Balada dos Quatro Ventos - páginas 11 a 17 - 1956
Um poema para Mozart inicia esta seção. Marigê é uma poeta contemplativa e filosófica, sua poesia é uma elaboração estética elevada, e exige empenho de quem empreende a leitura, e provavelmente essas características a diferenciam da tradição lírica comum em terras brasileiras.
página 11
BALADA DE 27 DE JANEIRO DE 1756
No momento revelado
em que Pan soou sua flauta,
a relva amparou a relva
no verde estático da manhã.
As túnicas vegetais
imobilizaram seus gestos
de pássaros e vento.
E as nuvens paralisadas
em algemas de promessa
eram pranto contido
nos olhos do vale.
Cessou o murmúrio antigo
com sabor de dríades.
Nascia uma criança,
e na música de suas mãos
Pan colocou o silêncio
das coisas inanimadas
para que ela o transformasse
em flautas múltiplas
de mistério e tempo.
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página 12
VERÃO
A Françoise Sagan
Dança o verde nas folhas
e as sombras dos pinheiros
formam um ballet aquático
no retângulo do lago.
Dançam os pássaros,
numa roda de gorjeios,
sobre a claridade das pedras.
As glicínias em grinaldas
de aromas crepusculares
tingem o indefinido de roxo:
Dançam labaredas nas pétalas
chamando a alma das corolas
para a música do dia.
Dança o sabor nas cerejas,
o calor nas asas das libélulas,
vapores dançam em nuvens,
corpos de sol dançam no amor.
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página 13
BALADA DA MEIA-NOITE
Esta é a noite que cerra as janelas,
Para que ela seja só
na alma dos jardins
e só viva entre nós prisioneiros
pela intuição dos olhos fechados.
Esta é a noite que derrama estrelas,
com polpa de eternidade,
para que as horas futuras
encontrem frutos dourados
do Jardim Proibido.
Esta a que conhece o segredo das pedras
e o guarda no cofre das doze badaladas.
A que visita o Ontem e o Hoje
na mesma interrogação
dos adeuses impassíveis.
Esta, a eleita.
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página 14
BALADA DA PERGUNTA
Serás sempre distância
e paisagem proibida?
Meus olhos frutificarão,
algum dia,
na terra de outono e névoa?
Serás sempre caminho sem princípio
e labirinto de angústia?
Terei algum dia
teus passos voltados
para estáticos tempos?
Serás sempre crepúsculo
na tarde do sonho,
o teu rosto viagem
e tua voz mistério?
A música que a pergunta
levanta no ocaso
será apenas interlúdio
de horizontes perdidos?
páginas 15 e 16
A CANÇÃO DE ANDAR DO NEGRINHO PERDIDO
Momento de canção de andar.
Embora existisse a passada
canção de morro,
só que agora misturada
ao torpor das pedras,
seguia o destino do leito dos trilhos
onde escorriam estranhos monstros
(e não perguntava: aonde vão, e donde vêm?)
Não sabia se as calçadas
seguravam a noite do seu rosto
nas pedras pesadas como sombras,
ou se as grandes paredes de mil portas
espreitavam seus olhos
deformando-os em estrelas quadradas.
Passavam as vozes, um segredo
repartido entre mil bocas.
Mas ele podia conhecê-lo, pelos lábios
amargos ou felizes,
pelas mãos serenas ou intranquilas.
Apenas o seu segredo
de ver-se só entre mil passos,
calado entre mil risos,
só a ele pertencia
e ninguém dele tomava posse.
Era dele,
e levava-o como um alforge
onde colocava toda a beleza
do movimento desconhecido.
Era dele,
embora não o decifrasse
e cada passo fosse como
se a pesada noite de seu corpo
se misturasse a outra noite.
Enquanto brilhavam as luzes
e os grandes monstros se moviam,
a memória antiga silenciava
parecendo só então viver
e seus olhos também eram passos
sem fadiga ou tempo.
Na sua mão fechada
levava a paz das manhãs
que descem os morros
cobertas de lírios e de nuvens ...
Quando seu rumo se alongasse,
através dela
a cidade saberia
que havia uma criança que não a entendeu,
não a interrogou
e perdeu-se pela noite e pelas luzes.
página 17
MARULHO
As barcas respiram
no rumo do verde
e ancoram o sono
de ventos incertos
nas pálpebras doces
das velas.
Tranquilidade
de redes trançadas
pelo sol pescador
no céu;
Nelas são presas
as minhas palavras
que serão canção
no sonho futuro
dos ventos incertos.
...
...
Marigê Quirino Marchini
Balada dos Quatro Ventos
1956
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