Diário de Bordo - parte 3.5 - de Marigê

Diário de Bordo, de Marigê Quirino Marchini.

São Paulo, 1958.

Parte 3 - Margem

Neste blog, parte 3.5

...

página 159 


BERCEUSE DE TEMPESTADE


Os relâmpagos?

Borboletas brancas e rápidas 

sempre inacabadas nas retinas.

E a chuva não invadirá

o provilégio do musgo sobre as grutas. 

Nem a volta das chaves nas portas. 

Passará sem alagar

a alameda branca dos espelhos. 

Nas duas faces da água

a que purifica

a que apodrece

brotarão rosas sem tinta,

apodrecerá o nome dos barcos.

Mas não haverá ninguém nas rosas nem nos barcos. 

Certamente o vento

vai abrir cofres velhos

e os olhos trancados dos retratos.

Mas não a canção já entreaberta.  


...

página 161 


Depois do sol da neve é 

o vermelho a verdade.

Reparai andorinha

como é rubro o telhado que descansa

a migração

como é púrpura este sangue 

que deixou marcas de norte 

na canção branca para vós.  


...

página 163 


Passagem de nevoeiros

consolo

nas árvores noturnas. 

O pássaro mais negro e puro

cantará.

Leões que dedilham as fontes da cidade 

adormecerão sobre as patas quietas 

e os mármores que eles guardam

serão cântaros momentâneos

da lua. 


...

página 165


RONDA


São as luas que interferem no pranto dos antigos

que vem chorar a ruína de suas cidades

de pinheiros nodosos cravados nas névoas.

Quando as luas chegam eles silenciam

porque há de novo cidades (outras)

com seus pinheiros nodosos cravados nas névoas ... 


...

página 167 


Entre o outono e o musgo

Alamedas vermelhas

vacilação das lanternas

ciganas. 


Entre o outono e o musgo passarão apenas 

os fantasmas tocados de chuva

como juncos floridos sobre neve. 


...

página 169  


Borboletas noturnas

afastam o dia antecipado

portas 

fechadas

de seda.

Na quase distância.

marulho de sol entre antenas:

desaba o novo

sobre o voo surpreendido. 


...

página 171 


Permanece

cada planta na contemplação 

de sua alma verde.

Cada uma

tem um pensamento que a difere das demais:

chuva,

o langor de uma asa,

celofane sobre o caule triste, 

noite.

Reparai em todos tons

do verde. 


...

página 173 


Se é mais distante a nuvem

ou o tempo que a formou,

não os desertos, nem os mares,

mas colibris, sabem. 

Eles, - que foram feitos de efêmero,

e soprados para os bosques,

tendo, no entanto, em cada geração

um, que alisando as cidades

amou seus pequenos jardins 

e cujo destino coube

na mão de um homem - 

são os únicos que podem

com seus dourados bicos

medir o mel amargo ou doce

da vida.   


...

páginas 175 e 176


BALADA PARA AS CIDADES MORTAS 


Essa tarde de inverno

toma o abandono das casas 

onde os donos moram nos beirais


e cantam. Assim permanece  em suas paredes

hoje e depois. Desfazendo-as em penumbra

sem que um alarme soe por amiga

mão. Quem viria

bater palmas no portão dos mortos?

***

Outrora as criadas desciam

as escadas. Presos nas toucas

seus cabelos desmanchavam tranças

ao vento das corridas. 


Corriam para atender as encomendas

chegadas. Um rouxinol para cada coluna,

cortinas, frutas mais azuis,

ou música em papel de seda. 


Outra vez os cabelos soltos.

Para os convidados

Para os importunos.

***

Já essa tarde é lua nas ruínas. 

E os cabelos dormem presos, muito longe.  



...

página 177


Suspende o dia sua fadiga;

ancião em tão pouco tempo

que passando a mão sobre seus olhos

ainda reconhecemos neles a selvagem


infância. Percorreu todos jardins

do vasto mundo, nas poucas horas

dadas ao seu fim. Dessa missão

trouxe o brilho quebrável das vidraças 


e o voo lento de nossa ideia

que compôs seu rosto fatigado. 


...

página 179 


CANTIGA


Na gruta do rei 

- o rei passou

a gruta não - 


o tesouro do rei

- o rei morreu

o ouro não - 


espera o rei

- e ele volta

sim ou não? 


...

continua aqui

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