Sonetos do Imperfeito - parte 1 - Do Mar

 



Em 1984, Marigê publica Sonetos do Imperfeito - volume que contém também sonetos do Mar, da Primavera, Noturnos e Venezianos. Talvez a capa possa confundir, mas o título principal é Sonetos do Imperfeito, como fica evidenciado na segunda capa. 

Vamos publicar neste blog  pelo menos um poema de cada seção. Iniciamos com sonetos do Mar. Esse é um tema caro à poeta, desde seu inaugural Balada dos Quatro Ventos, de 1955, passando por Diário de Bordo, de 1958. Além disso, dedica o livro à poeta Marina Stella . Estrela do Mar.

Inicialmente, voltemos nossa ateção à epígrafe obtida do pintor Veronese: 

"Nós, os pintores, como os poetas e como os loucos,

ousamos tomar certas liberdades."

...


O primeiro soneto, do Mar, inicia a Viagem que não é exatamente tranquila, mas "bons ventos não fazem bons marinheiros" ou  "mar calmo não faz bom marinheiro", como diz o provérbio.

Inicialmente, por ter forma fixa - soneto - ou seja, um formalismo, poderíamos pensar uma tendência à placidez, à serenidade, mas não é o caso. Há dificuldades, escuridões, nessa travessia. 

Mas também sabemos que o formalismo é aberto, pois são aceitas certas liberdades, como avisado na epígrafe. 

Vamos, pois, ao primeiro soneto:


VIAGEM



Num pressentir sem bússola e sem âncora

porões, navio fantasma, veios d'água,

negra escotilha, rostos, peixes, luas,

bebem do céu o azul já mareado;


dias de sal trabalham este convés,

içar de vela, albujarrona, mastros,

fiel prendendo em austro vento além

de horizontes, as pérfidas paisagens,


e um capitão Ahab desse sonho, 

monstro e dono feroz dessa procura,

ódio e amor, caçado e caçador, 


nos profundos corais do cachalote

a bússola a buscar o polo norte 

a âncora a fincar chão nesta loucura. 


Comentários:

Inicia-se o poema com um "pressentir" sem bússola e sem âncora, e por isso podemos entender a sequência de nomeações de itens sem uma ordem aparente, mas aos poucos vai se vislumbrando o cenário. 

Então nesse pressentir vemos inicialmente porões, navio fantasma, veios d'água ... um vislumbre de pesadelo. 

Mas logo a escotilha deixa adivinhar os bens que estão além dela, a noite, mistérios - rostos, peixes, luas - bons tesouros. 

Todos esses itens - os deprimentes e os auspiciosos - bebem do céu o azul, tem algo de celeste, mas o azul do céu já é mareado, já se confunde com o mar. Estamos numa situação de sonho em que a divisão de mar e céu, terra e além, está borrada, fundida num só ambiente.

As coisas marinhas emprestam algo do céu, o céu empresta algo das coisas marinhas.


Na segunda estrofe, ficamos sabendo que "dias de sal trabalham este convés", então entendemos que se trata de um ambiente de labuta, de trabalho árduo - pensa no sal que pode queimar a pele - claro que não são os dias que trabalham, mas as pessoas que dia a dia trabalham, isto está implícito na imagem.

As velas são içadas, na esperança de captar bons ventos; as paisagens atuais são pérfidas, são más, causam medo, mas há expectativa de alçar horizontes além, de fazer com que essa situação presente - navio fantasma, capitão feroz - sejam içados para um ponto mais auspicioso. 

E eis se apresenta o personagem principal, o capitão Ahab - Este inicialmente é o personagem do livro Moby Dick, de Harman Melville, que obsessivamente busca um cachalote branco. 

Pois bem, aqui o personagem é homenageado, mas está figurando como o ser humano. Todo ser humano pode estar nessa situação. 

O ser humano é monstro, mas também mestre, dono de uma procura - a procura do cachalote (ou qualquer outra coisa que seu desejo aponte de maneira consistente, que o faça se aparelhar e investir trabalho e esperança para buscar) - somente assim - na procura e no esperado achado - é possível finalmente ter bússola (direção) e âncora (nessa loucura que é a vida).


Comentários de Elisa Sayeg . 


Poema de: 


Marigê Quirino Marchini

Sonetos do Imperfeito

São Paulo: Littera Editores, 1984.  


Veja também o livro: 

Diário de Bordo - Marigê - 1958



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